Capelinha de Benigna - Inhumas, Santana do Cariri (CE)
Muitas
noites, eu perdi o sono pensando na história triste de Benigna. Era a
história mais triste que se conhecia em Santana do Cariri, naquele
tempo. Depois eu conheci outras, como a de Paizinho, o doido inofensivo
que perambulava nas portas das casas, gesticulando com a cabeça.
Mas nenhuma igual ao barbarismo do crime que abateu o ânimo dos
habitantes de Santana do Cariri e dos arredores, em todo lugar onde a
notícia circulou. Principalmente, porque Benigna era duplamente
indefesa, naquele trágico dia. Como poderia ela, criança que era,
imaginar que alguém seria capaz de tamanha ignomínia e que ela era o
objeto do sórdido desejo reprimido daquele pretendente?
Até aquela época, eu não sabia que a humanidade pode gerar seres tão
disformes. As pessoas benziam-se, quando falavam no assunto; algumas
faziam um gesto com os ombros e o dorso, como se uma corrente elétrica
passasse por elas, simplesmente pela lembrança da morte de Benigna.
Arrepiavam-se.
A fonte para onde ela se dirigia não ficava longe de sua casa, em
Inhumas, mais precisamente no (Sítio) Oiti; e o trajeto era-lhe
familiar. Costumava ir lá buscar água de beber para a família, como
todos do povoado costumavam. Ninguém tinha qualquer receio, porque não
havia razão nenhuma para isso. Por isso Benigna estava, de todo,
vulnerável.
Benigna era órfã de pai e mãe. Maria Rosa, sua parenta, recebeu-a
como filha e a criava. Era bonita a menina Benigna. Tinha dois irmãos:
uma casada e um rapazinho, que vivia junto com a mesma tia. Contam que
Benigna era dotada de extrema bondade. Sempre atenta para auxiliar nos
afazeres domésticos. Estudiosa também.
Estava entre os 13 e os 14 anos, quando foi assassinada. O crime foi
logo descoberto e o criminoso, preso, em sua própria casa. Alguém o viu
na beira do riacho lavando um facão e, quando a polícia iniciou as
buscas, ele foi apanhado. Mamãe se lembra dessa versão da história.
Lembra também que ela foi aluna de Madrinha Ceição que tinha por ela, um
carinho especial. Dessa época criaram-se laços de nossa família com a
dela. Tanto é que, após sua morte, Dona Maria Rosa deu de presente à
Titia Diva o terço usado por Benigna, na sua primeira comunhão.
Contam-se milhares conseguidos por seu intermédio. Tantas graças
alcançadas por pessoas respeitáveis; pessoas que merecem todo o nosso
crédito. O Padre Cristiano, logo após o acontecimento, pediu à família
que lhe desse o pote de Benigna, marcado para sempre naquela última
viagem. Guardou-o com zelo. Quando as chuvas não se faziam prenunciar e o
povo sofria a ansiedade da espera decisiva, costumava orar. Rogava a
Benigna que intercedesse a Deus pelo povo da sua terra; pelos
agricultores, cujo destino se marcava pela presença, ou não, das chuvas,
e colocava aquele pote sob a biqueira. Diz Mamãe que vinha chuva.
Seus objetos pessoais hoje estão preservados numa sala especial, no
Museu dos Coronéis, em Santana do Cariri. Há uma atmosfera de mistério e
santidade, quando se transita naquela sala, entre as coisas que
constituíam seu pequeno patrimônio. Era uma vida simples, feita de
coisas simples. Aquela singeleza parece atribuir mais força à história.
São raros os habitantes de Santana do Cariri ou das redondezas que
não tenham sido marcados por essa história. E as famílias passaram a
ampliar seu zelo e os cuidados com suas meninas. Quando eu saí de casa,
aos quatorze anos, para vir estudar em Fortaleza, ouvi muitos conselhos
calcados na experiência de Benigna. Madrinha lembrava-se dela com
frequência e nos fazia recomendações.
Cresci escutando as narrativas de episódios miraculosos atribuídos à
menina Benigna, mártir na infância, em 24 de outubro de 1941. Seu corpo
era um templo que ela preservou com a própria vida. Quanta coragem,
dignidade e honra numa pessoa tão jovem. Por isso, cremos que Deus a
recebeu em Sua Corte, como um espírito de luz.
(*) Laudícia Holanda é professora da Universidade Regional do Cariri