Com o premiado longa Siri-Ará, Rosemberg Cariry encerra o Cine Ceará em exibição hors-concours. O filme é uma tragédia contemporânea que remonta às origens da nação brasileira
Alinne Rodrigues
da Redação
04 Ago 2009 - 00h29min
Este ano, no Cine Ceará, Rosemberg Cariry é cineasta hors-concours. Com uma filmografia respeitada em nível nacional, o cearense natural de Farias Brito lançou, ano passado, seu mais recente longa-metragem, Siri-Ará. Nele, o diretor conta a história de Cioran, um mestiço brasileiro que, depois de exilar-se, retorna ao sertão em busca de sua origem. Para tal missão, ele elege como guia uma misteriosa e velha índia. Na cruzada, ele encontra os guerreiros do reisado, grupos de folguedos dramáticos populares e os índios da banda de pífanos, figuras que remetem à tragédia fundadora do Ceará, quando Dom Pero Coelho, em 1603, chega aqui e encontra a guerra, a fome, a peste, a loucura. O tempo é o da invenção da nação brasileira, e Cariry busca esse resgate.
Sucesso no último Festival de Brasília, a película foi congratulada com três troféus Candango (o prêmio do festival): ator coadjuvante para Everaldo Pontes e elenco feminino, englobando os prêmios de melhor atriz e atriz coadjuvante. Protagonizado por Adilson Maghá e Erotilde Honório, o filme conta ainda com a participação do Reisado do Mestre Aldenir, a banda cabaçal dos Irmãos Aniceto e a Companhia Dita.
Concluir Siri-Ará não foi tarefa fácil. Foram 10 anos até que o filme finalmente fosse finalizado. Em 2007, Cariry foi contemplado pelo VI Edital de Cinema e Vídeo da Secult, recebendo a concessão de direito para captar recursos junto a empresas privadas via lei de incentivo estadual. Para Wolney Oliveira, diretor geral do Cine Ceará, ter sido contemplado pelo edital já é motivo suficiente para Siri-Ará ser escalado para encerrar a edição deste ano: "Esse filme é resultado do VI Edital, é importantíssimo de se ver. É o único longa pronto no Ceará e não foi apresentado ainda aqui. O palco do Cine Ceará me parece o lugar mais propício para essa estreia", diz. Em entrevista ao O POVO, Rosemberg Cariry comenta o caminho para a realização de Siri-Ará e a esperada estreia no Cine Ceará.
O POVO - Siri-Ará tem sido definido como uma tragédia contemporânea. Você concorda com essa definição?
Rosemberg Cariry - Sim, é uma tragédia pós-moderna. Por outro lado, um filme como este é uma jornada da alma, no caso, da minha jornada. Ele revolve sombras e arquétipos, em busca da compreensão da história coletiva, buscando a minha própria compreensão, enquanto cearense e membro de uma comunidade de destino. Neste filme, não trabalhamos com o naturalismo, mas com formas de representação herdadas das danças dramáticas populares. Não temos personagens como são compreendidos os personagens nas narrativas do cinema industrial, mas temos arquétipos: o rei, a rainha, o chefe indígena, a princesa-menina, a feiticeira, a prostituta. Essas figuras agem dentro de "mitogemas" em um tempo extraordinário, que é o tempo sagrado, o tempo mítico. O filme começa em uma Fortaleza pós-moderna, onde o pré-histórico convive com o contemporâneo, depois vai para o sertão, onde a paisagem absoluta e mágica aparece como um palco para que nele aconteça a representação trágica e simbólica da nossa história coletiva, que é também a nossa história individual. A compreensão deste mergulho na alma coletiva, nas sombras e nos fantasmas do nosso passado, ajuda-nos no nosso processo de consciência e de individuação no tempo presente. O sertão é o não-tempo ou o tempo extraordinário, onde as janelas se abrem entre as "eras", entre o "real" e o "imaginário". A concepção deste filme eu não tirei apenas das minhas leituras da psicologia profunda e dos tratados de mitologia, mas tem muito das formas de representação e das narrativas populares tradicionais. A compreensão de um filme como este vai se transformando. O que vemos hoje não é o que vemos amanhã. Isto é válido também para o sentimento. Este filme ainda terá muitas outras "leituras".
OP - Foram 10 anos de produção para finalmente lançar o filme. Qual foi a ideia inicial e como ela foi se modificando até chegar ao resultado final?
Rosemberg - Trabalhei muitos anos neste projeto. Uma ideia transforma-se com o tempo. Inicialmente, escrevi o roteiro de um filme épico e histórico que narrava a tragédia fundadora do Ceará, quando em 1603, Dom Pero Coelho de Sousa, a mulher, os filhos e um exército de mil homens aventuram-se pelo sertão do Ceará, para expulsar os franceses estabelecidos na Serra da Ibiapaba e conquistar as riquezas do Eldorado. Dessa expedição, regressam vivos ao litoral, roídos de fome, envoltos em trapos e loucura, apenas nove pessoas. Nunca consegui os recursos suficientes para realizar o filme com essa dimensão histórica e logística de produção. Resolvi, então, fazer um filme "visage", uma ópera popular, uma alegoria, usando os atores e as manifestações dramáticas populares, como o Reisado do Mestre Aldenir (os colonizadores) e a Banda de Pífanos dos Irmãos Aniceto (os índios). Na construção desse novo roteiro, foi importante a colaboração de Firmino Holanda. Neste novo modelo, passei quatro anos. Destes quatro anos, dois anos foram gastos na luta para receber um prêmio de produção que ganhei no Ceará, com o processo de finalização do filme sendo interrompido várias vezes. Não foi muito fácil todo este percurso. O filme é um "figural", numa clara referência às representações dramáticas dos reisados de congo do Cariri cearense. O filme não acontece em um tempo histórico ordinário, mas em um tempo mítico, que é um tempo sagrado, uma espécie de não-tempo. É um filme construído a partir dos arquétipos, dos mitos, das narrativas e manifestações mais profundas destes folguedos dramáticos populares, possibilitando uma nova compreensão da nossa história e da nossa formação cultural. Um filme feito com fragmentos de registros reais, de geografias reais, de homens e mulheres também reais e contemporâneos, em seus impasses e assombros, mas sempre transfigurados pela alegoria e pela imaginação. A ação se desenrola no tempo presente, mas o drama apresentado reflete também sobre o passado e a tragédia histórica fundadora. É no sertão que a cultura popular se reinventa, uma nova alma, uma nova civilização feita da herança de muitos povos e dos fragmentos de incontáveis culturas.
OP - Participando do Festival de Brasília, o filme foi premiado pelo elenco. Como ocorreu a escolha dos atores e como os personagens se mostram na tela?
Rosemberg - Alguns atores trabalham comigo desde meus primeiros filmes e são parceiros importantes na construção da minha cinematografia: Erotilde Honório, Teta Maia, João Andrade Joca, Rodger de Rogério, Carlos César e Luiz Carlos Salatiel, entre outros. Trabalhei, pela primeira vez, com Sâmia Bittencourt, com Juliana Carvalho, com João Antônio e com Mirela Rosa, também atores cearenses de grande talento. Dos veteranos aos novos, todos são atores que se destacam pelo talento e pela dedicação. A Richele Vieira, que faz a princesa-menina Cajuí, é uma revelação, foi descoberta em uma escola pública de Quixadá. De outros estados, trouxemos atores importantes: Adilson Maghá (Minas Gerais), Everaldo Pontes (Paraíba) e Francisco Pellé (Piauí). Estes atores têm as características próprias para encarnação das "figuras" do filme. Para mim, foi uma satisfação trabalhar com estes atores, que enfrentaram, com paciência de Jó, todas as dificuldades do sertão - uma temperatura diária de 40 graus, para compor seus "figurais". De fundamental importância para o filme foi também o trabalho dos dançarinos Fauller e de Wilamara Barros, junto com os integrantes da Companhia Dita, na realização das performances das "visages" que atazanam Cioran. Juntando-se a este elenco profissional, tivemos ainda a participação de dezenas de atores amadores, da região do sertão central. Os atores não representam personagens, mais figuras, no sentido de que são arquétipos. Recorremos ainda a toda uma representação dramatúrgica dos folguedos dramáticos populares tradicionais, estabelecendo os fundamentos da estética do "figural" dos reisados, elaborando uma linguagem de representação bem brasileira. Os personagens, embora sejam pessoas cheias de conflitos, de dores e de esperanças, sempre tendo que superar os seus próprios limites, têm também uma função de "figura" emblemática e mítica. Os invasores europeus são representados por descendentes de europeus que brincam nos Reisados de Baile e nos Guerreiros, os índios são representados por caboclos da região e pelos componentes da Banda de Pífanos dos Irmãos Aniceto. Destacam-se neste conjunto de folguedos tradicionais os mestres Antonio e Raimundo, da banda de pífanos dos Irmãos Aniceto, e os mestres Aldenir e Isabel, do Reisado do Crato.
OP - A estreia no Ceará deve ter um gostinho especial. Como é chegar ao Cine Ceará, voltando para casa, no encerramento do festival?
Rosemberg - O Cine Ceará é um espaço importante da cultura cearense e exibir um filme meu neste festival já faz parte de uma tradição. Já fiz oito filmes de longa-metragem, e todos eles tiveram exibições hors-concours no Cine Ceará, com exceção do filme Patativa do Assaré - Ave Poesia, que concorreu. É melhor não competir, deixar espaço para os que vêm de fora. Participar do Cine Ceará é uma honra, afinal trata-se não apenas de um dos festivais mais importantes do País, mas do festival da minha terra; mantido bravamente pelo Wolney Oliveira, que todo ano trava uma luta desmedida para que o festival aconteça. O Cine Ceará é também, para mim, uma oportunidade de encontrar-me com as pessoas que fizeram o filme e também com um público que fui conquistando ao longo de todos estes anos. Eu também tenho meus doze fiéis espectadores. É também a oportunidade que temos de agradecer ao Governo do Ceará, através da Secult, à Coelce e ao BNDES, entre tantas outras instituições, que nos ajudaram a realizar este filme de arte, voltado para a cultura profunda do Ceará.
SERVIÇO
SIRI-ARÁ - Filme de Rosemberg Cariry encerra hoje o 19º Cine Ceará, a partir das 20 horas, no Sesc São Luiz (Praça do Ferreira). Outras informações: 3258 1001.
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