Relatos da desavença de Higino José Pereira com Manoel de Brito - quem manda no pedaço
Higino José Pereira era filho do casal, Camilo Pereira e Maria Pereira, nasceu em 1853, no sítio Vacaria, pertencente nessa época a freguesia de São Mateus dos Inhamuns. Casou-se na igreja de Nossa Senhora do Carmo da vila de São Mateus em 1873, com Maria Teresa de Jesus. Dessa união abençoada por Deus, nasceram treze filhos, cinco homens e oito mulheres: Antonio Higino Pereira, Camilo Higino Pereira, José Higino Pereira, Manoel Higino Pereira, Pedro Higino Pereira, Joana Josefa Lima, Simiana Maria de Oliveira, Tereza Higino Pereira, Delfina Higino Pereira, Donara Higino Pereira, Felismina Higino Pereira, Cândida Higino Pereira, Aninha Higino Lima.
Higino Pereira herdou da parte de seu pai Camilo Pereira, o sitio Vacaria com apenas 320 braças (704 m) de frente e uma légua de fundos, cujos limites no sentido leste-oeste se estendiam do Pau d Arco ao riacho Fortuna, e no sentido transversal da Cacimba do Gado ao Recanto.
Como a terra não dava para sustentar essa numerosa família, a maior parte dos filhos de Higino Pereira, teve que migrar da sua querida terra natal para outros lugares, até fora da província do Ceará. Camilo Higino tomou rumo ignorado por algum tempo, mais ou menos na década de 1930, mandou notícias dizendo que tinha assentado praça como cozinheiro da Marinha de Guerra do Brasil, no Rio de Janeiro e relatou por carta as suas façanhas com os militares revoltosos, na deposição do presidente do Brasil, Washington Luís.
Manoel Higino foi morar em São Vicente, perto de Várzea-Alegre, sendo posteriormente acompanhado pela sua irmã Felismina Higino. Pedro Higino se dedicou ao comércio, também, animava todas as festas religiosas de São Mateus ao Quixará, com o seu famoso carrossel da Vacaria. Simiana Maria de Oliveira se apaixonou por Manuel Mandu das Cajazeiras, por esse motivo muito desagradou o senhor Higino, sem acordo entre as famílias, fugiu com o seu amado nas caladas da noite, indo morar no sítio São João no antigo Quixará.
Higino Pereira era agricultor, plantava as culturas de subsistência, milho, feijão e algodão nas quebradas e chapadas, arroz, mandioca, batata-doce e fumo nas vazantes do riacho Fortuna e nas baixadas dos pequenos córregos. Tinha um bom rebanho leiteiro e uma pequena tropa de burros, mas a criação de cabras naquelas paragens era ‘mata’.
Naquela época quase todos moradores da região, criavam muito bode solto, tanto na caatinga quanto nos tabuleiros do Cariutaba. Ao por do sol os pátios e currais das fazendas ficavam apinhadas de bodes.
Certo dia um caixeiro-viajante vindo das bandas de São Vicente das Lavras da Mangabeira, pernoitou numa dessas fazendas que tinha muita cabra, lá nas Cajazeiras dos Martins. No dia seguinte passando pelo casarão do senhor Higino, contou que apesar do sono, não lhe pregaram os olhos, durante toda aquela longa noite, devido o balido ensurdecedor das cabras e bodes.
Enquanto o vendedor mostrava a sua mercadoria no alpendre da casa do senhor Higino, disse em tom bem-humorado:
- Agora só vou vender tecido a quem não tiver bode! Passei quase toda a noite as claras, sem dar nem um cochilo, o bodejado era medonho!
Uma pessoa que estava ao seu lado, aproveitando a conversa, disse-lhe em tom de brincadeira:
- Então, meu amigo, pode me vender fiado que eu não tenho bode!
O vendedor retrucou, imediatamente:
- Também, não vendo a quem não tem bode!
Naquela época bode era ‘mata’ nas fazendas da região, o animal, também, podia ser utilizado como moeda de troca, para aquisição de bebidas, tabaco e quinquilharias de uso doméstico.
Como era difícil naquela época encontrar uma loja de tecidos! Era um verdadeiro luxo comprar tecido e isso só era feito raras vezes, de ano em ano, quando as safras eram abundantes nas regiões. A maioria das roupas, inclusive a ceroula, era feita em um tear usando o fio de algodão torcido na roca.
Algumas vezes Higino Pereira ia fazer compras em Icó, uma das cidades mais importantes do interior da província do Ceará, naquela época, ponto de encontro dos vaqueiros que vinham do Sertão do Cariri, da Paraíba e dos Inhamuns. Daí se estendia em direção ao litoral, a Estrada Geral do Jaguaribe por onde transitavam as boiadas dos sertões cearenses e a carne salgada, com destino aos centros de armazenamento e distribuição da cidade portuária de Aracati.
Nessas viagens a cidade de Icó, Higino Pereira levava costumeiramente os seus dois filhos mais velhos, Pedro Higino e Manoel Higino. Naquela época a maioria dos fazendeiros comprava fiado, com prazo de pagamento de um ano, geralmente após a colheita da safra do algodão, do tabaco ou da venda do jabá. Caso o comprador precisasse garantir o negócio era só puxar um fio do bigode e afixá-lo nas anotações feitas pelo credor.
Higino José Pereira era um homem pacífico e trabalhador, mas não tolerava desaforos. Porém, um dia ele encontrou o que não queria, ou seja, certo sujeito chamado Manoel de Brito, cabra desaforado que dava surra em gente e gostava de arruaças.
Esse encontro fortuito aconteceu depois de uma missa na capela de Santo Antônio em Cariutaba, dia 11 de junho de 1873. O desafeto e insolente Manoel de Brito se aproximou sorrateiramente, segurou nas rédeas do cavalo de seu Higino e disse em tom intimidador:
- Você sabia que quem manda aqui, sou eu? Se prepare que qualquer dia desses, você vai levar uma surra!
Naquele momento, o sangue lhe fervilhou dos pés a cabaça, mas ele não queria enfrentá-lo de mãos abanando, especialmente depois de ter feito a primeira confissão do ano, antes da sagrada missa.
Voltou para a Chapada, transtornado e com um nó bem grande atravessado na garganta, ao chegar a sua casa, fugiu-lhe o apetite. Naquele mesmo dia, planejou de forma irascível a vingança. Para efetuar os seus intentos, guardou silencio, nem mesmo sua esposa Joana Josefa ficou sabendo.
No dia seguinte, ainda antes da barra clarear, encilhou o seu cavalo braiador, tomou o rumo das Charnecas, à procura de um valentão, de nome Caetano e lhe ofereceu dois mil reis para juntos darem uma boa sova no ‘cabra’ Manoel de Brito.
Manoel de Brito, nessa época, morava lá pelas bandas do Recanto, tinha situado uma lavra de fumo na vazante do riacho Fortuna e estava ansioso para vender as mudas de sua plantação. Higino pediu a Caetano, que de forma dissimulada, disse ao referido desafeto que queria comprar umas mudas de tabaco para fazer uma lavra no baixio da ribeira do Machado. No entanto, o plano era aplicar-lhe uma boa surra num lugar solitário, onde os gemidos fossem sufocados pelo matagal.
Assim como combinado, Caetano levou o atrevido, até a beira do riacho, enquanto o senhor Higino, seguia sorrateiramente por entre a rama da caatinga. Assim, Manoel de Brito partiu em direção ao local de suplício, mas de forma previdente seguia conduzindo à cintura uma afiada jardineira e um facão rabo de galo.
Ao chegar ao local combinado, Caetano disse em voz alta e irascível:
- Prepara-se para apanhar, cabra safado! Tu nunca mais vais insultar homem nenhum!
Manoel deu uma risada zombeteira, pulou para trás e arrastou a peixeira. Nesse instante, Higino surge por entre os arbustos como uma jararaca enfurecida, segurando na mão direita um cacete de jucá. A luta é travada o ‘cabra’ é forte, não se rende facilmente, mesmo lutando contra duas feras embravecidas e com fome de vingança.
Durante o embate, Higino tentava tomar-lhe a faca, mas na puxada súbita, a afiada lâmina decepou-lhe o polegar direito. A adrenalina era forte, ele só percebeu o estrago, quando já voltava para casa. A luta recrudesceu, o cacete caiu, até que finalmente, Manoel de Brito tomba num barranco, nessa situação eles conseguem tomar-lhe a faca. O ‘cabra’ soluça ofegante, está quase sem forças.
Naquele momento, decidiram liquidar de vez o desafeto, tinham medo de uma posterior vingança. Cravaram-lhe duas facadas, mas num último esforço, Manoel consegue se esquivar e finge-se de morto, por sorte penetrou-lhe apenas por entre as costelas.
Após a desforra, os vingadores se levantaram e fugiram, mas por sorte do destino, felizmente senhor Higino não se tornou naquele dia um assassino.
Ficou comprovado de fato, que Manoel de Brito era muito forte, pois depois dessa sova conseguiu se recuperar, mas nunca mais foi o mesmo, ficou com o corpo todo entrevado e passou a depender dos outros para sobreviver.
Esse crime praticado por Higino lhe rendeu muito anos de sofrimento e angústia. Manoel era morador de Adriano de Agostinho e este não deixou por menos, envidou todos os seus esforços para botar o Higino na cadeia.
Tomando as dores de seu morador, Adriano denunciou o agressor no Corpo da Guarda Municipal de São Mateus. A situação ficou complicada, acusação de tentativa de homicídio premeditado e ainda com um agravante, a participação de Caetano, isso lhe rendeu um grande processo e um efetivo mandato de prisão.
Agora Higino estava em extremo aperto, acossado por Adriano e procurado pela guarda policial. Diante dessa situação complicada, ele resolveu tomar conselho com o seu amigo Neném, um político de grande influencia na câmara distrital de São Mateus.
Como a patrulha estava na dependência dos políticos, Neném aconselhou Higino a não se render diante da guarda. Naquela época os policiais da guarda de São Mateus, vestiam uma farda preta, andavam a pé e não podiam usar arma de fogo para capturar o criminoso, depois de passado o flagrante delito, a ordem era segurá-lo pela mão, pois, caso matassem alguém, poderiam ir à forca.
Diante desses fatos, Neném deu o seguinte conselho:
- Olha compadre Higino, não se entregue de jeito nenhum a guarda municipal, senão você vai parar no xilindró!
E acrescentou:
- De hoje em diante você passe a andar com uma um rifle sempre carregado, um bornal de couro cheio de balas e um facão a tiracolo.
- Agora preste atenção, toda vez que a força chegar a sua casa e lhe der ordem de prisão, você aponte o rifle e grite forte, sem tremer: arreda o pé, se não eu toro na bala!
E assim aconteceu por diversas vezes, enquanto isso, Higino foi escapando da prisão. Mas, Adriano era impertinente não deixava de atiçar a polícia de São Mateus, pressionado pelas circunstâncias, Higino resolveu acabar de vez com essa importunação que lhe atormentava noite e dia. Fez uma tocai ao Adriano, por detrás de umas moitas de mofumbo que ficavam na passagem do riacho, bem próximo de um lugar conhecido como Gangorra.
Elaborado o plano sinistro, armou-se de um bacamarte e de um facão e permaneceu na tocai atrás de uma moita. De repente, surge Adriano sozinho e de mãos abanado, o momento lhe era propicio.
Naquele momento, muito ansioso e trêmulo ele apontou o bacamarte em direção ao desafeto, enquadrou-o a altura do peito, mas teve uma grande surpresa, a sua visão embaçou, viu vinte cinco ‘adrianos’ emparelhados, então, meio confuso não sabia em qual direção disparar. Baixou o cano, mirou outra vez e a cena se repetiu.
Então, diante dessa visão, teve um pequeno momento de lucidez e pensou:
- Isso é um sinal divino, não devo levar a cabo tal intento maldito!
Naquele dia Deus colocou a mão no cano da arma de Higino Pereira para que ele não se tornasse um assassino, pois naquela época a pena de morte ainda estava em vigor.
Senhor Higino era um homem muito religioso, essa briga foi uma armadilha do capeta para destruir a sua vida. Ele era um homem de bom coração, como mostram os acontecimentos posteriores. Algum tempo depois da ocorrência desse triste episódio, veio à terrível seca de 1877, que assolou a província do Ceará, de ponta a ponta. Nessa época, milhares de cearenses morrem vítima da fome e da cólera.
A situação de Manoel de Brito era de cortar coração, não tinha onde cair morto, a fome apertava-lhe as entranhas. A sua pobre mulher de cabelos desgrenhados e pele bastante ressequida, queimada pelo sol escaldante da caatinga, rezava pra todos santos que lhe acudisse. Foi aí que surgiu um filho de Deus que lhe deu um conselho:
- Olha comadre eu andei pensando, pensando, sobre a sua situação e cheguei à seguinte conclusão: do Monte Alegre a Vacaria, só há pessoa uma que possa lhe ajudar! Posso dizer: Quem?
- É Higino Pereira, pois em toda região é o fazendeiro mais abastado. Pode ir até lá, pois tenho certeza de que não lhe negará ajuda!
Não lhe restava mais nenhuma alternativa, então, resolutamente a pobre mulher albardou o jegue alazão, munido de dois caçuás de cipó e foi até a Chapada. Muito encabulada e temerosa, a pobre e desvalida criatura, bateu a porta da casa do senhor Higino, ao pingo do meio dia.
Que supressa agradável! Higno, sem titubear lhe atendeu com a maior presteza, convidou-a para sentar-se a varanda, enquanto, Joana Josefa lhe servia um café bem quentinho. Subiu até paiol, desfolhou milho, abriu os surrões de couro batido e despejou feijão e arroz, sem pena e sem dó, atendendo prontamente as necessidades de seu velho inimigo.
Assim, com esse simples gesto de generosidade, ele jogou um balde de água fria no seu passado réprobo, daí em diante nunca mais, Adriano o perturbou.
Higino contava sempre esse lamentável capítulo da história de sua vida, sentado num tosco banquinho de madeira no alpendre de sua casa, lá na Chapada, enquanto isso, o mancebo Antonio Gino guardava silente essas coisas no seu coração, planejado os rumos de seu proceder. Posteriormente, tornou-se o sucessor de seu pai e o morador mais ilustre da Vacaria.
“A vingança nunca é plena: mata a alma e envenena”
“Se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer. Se tiver sede, dá-lhe de beber. Pois fazendo isso, amontoarás brasas sobre a sua cabeça. Não te deixes vencer pelo o mal, mas vence o mal com o bem” (ROMANOS 12. 20-21).
Meu sertão, minha gente e minha vida. Relatos de Antonio Ferreira Lima, escritos por Antonio Anicete de Lima.